domingo, 26 de maio de 2013

Parece

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    Há exato um mês antes de seu aniversário de vinte e quatro anos, depois de dormir e atravessar uma noite com séries de pesadelos e sobressaltos, Rudi Roman despertou sentindo dores no peito e uma espécie de dormência em seu braço esquerdo. O relógio sobre a cômoda marcava onze e dez da manhã e mais uma vez iria chegar atrasado no trabalho, mas para quem trabalhava essa falta não lhe importava.
   Após acordar Rudi ainda permaneceu deitado por alguns minutos. Sem vigor para levantar, ele procurava respostas para seu desconforto. Não devia ter feito aquilo... Seu quarto havia sido assaltado por assombros tão intensos, que contraíra seu corpo com os braços cruzados no peito e as pernas flexionadas sobre o abdômen. Provavelmente a posição fetal tenha comprimido os órgãos do tórax e provocado esse desconforto que lhe acometia ao despertar. A claridade que entrava pela janela basculante pronunciava que seria um dia muito quente. Sem mais tempo para se revirar na cama, Rudi se levantou.
   Logo que colocou os pés no chão para se dirigir ao banheiro, se corpo foi transpassado por tonturas e seus passos se tornaram trêmulos. Diante do espelho Rudi achou que seus movimentos eram mecânicos. Não conseguia focar sua imagem, parecia um arremedo de si. Estou realmente acordado? Sinto como se algo que pertence ao meu corpo estivesse de alguma forma se desvencilhado e agora meu reflexo me é alheio. Parece que há outra pessoa ao meu lado e que está tomando minha mente. Na verdade Rudi desconfiava que havia algo mais profundo na origem desse desconforto. Algo além da intoxicação a qual submetera seu corpo, depois do amálgama de cerveja, conhaque e cocaína, que se estendeu até as primeiras horas da madrugada*

* Nota do narrador: Rudi achava-se, de uns tempos para cá, num estado de tensão permanente, pois sua vida havia entrado em um circuito, que se resumia em trabalhar para pagar os juros de sua dívida no banco. Esse estado corroborava para uma entrega tórpida quase diária, que atravessava os limites plausíveis.
  Devolta ao quarto Rudi foi tentado a deitar-se novamente, mas procurou desvencilhar esse impulso, colocando apressadamente a calça jeans que estava ao pé da cama, a mesma que vinha usando nos últimos três dias. Também vestiu uma camisa xadrez e calçou o par de meias e o tênis. Rudi era magro sem nenhum esforço para ser, com dois profundos sulcos acima do maxilar, em cada lado da face e de estatura mediana
   Usualmente Rudi se dirigia à cozinha e preparava seu desjejum. Um pão com queijo quente, simples, aquecido no microondas, depois colocava leite em um copo, adicionava café solúvel, pouco açúcar e também aquecia no micro. Mas nesse dia não. Rudi preferiu algo mais refrescante. Pegou a caixa de leite na geladeira, colocou em um copo e adicionou Nescau. O pó custou em dissolver no leite gelado. O tempo que o lanche ficou no microondas, Rudi gastou com uma colher remexendo o leite, tentando desfazer as pelotas do achocolatado que se formaram no fundo do copo. Poderia colocar em um liquidificador, mas depois teria que lavar... Rudi retirou o lanche do microondas e logo que tentou levar à boca, sentiu uma enorme repugnância. Mesmo assim arrancou um pedaço e mastigou sem a mínima fome. O bolo que se formou entre os dentes e a língua, custava em atravessar a garganta. Espero que esse Nescau me sirva até a hora do almoço que com certeza será tarde. Rudi bebeu o achocolatado com goles afoitos e comeu uma pouco mais da metade do pão com queijo. O copo ficou sobre a pia com o seu fundo enegrecido.
   Os dias daquele início do outono estavam secos e quentes, caminhar pela rua se tornara uma penitencia. Rudi desenvolvia sem pensar o trajeto da sua casa até o ponto de ônibus, talvez por estar habituado ao caminho que percorria semanalmente nos últimos quatro anos. O ponto ficava em frente um bar, e naquele dia estava tocando em alto volume a música de uma banda de forró – você não vale nada mas eu gosto de você... Sob o sol do meio-dia, se via apenas as siluetas das pessoas dentro do bar, mesmo assim, Rudi reconheceu uma sombra que havia estado com ele na noite anterior. Deve estar ai desde ontem, ou passou a noite entre as praças e outros bares. Rudi não nutria nenhuma amizade por aquele rapaz, as poucas vezes que conversaram foi em alguma roda de baseado.
     Rudi avistou o ônibus se aproximando e sinalizou para o motorista parar. Ele entrou e passou seu olhar pelo coletivo, procurando um lugar vago para sentar. Encontrou apenas o banco reservado aos deficientes físicos e os idosos, logo em cima do eixo dianteiro do ônibus, bem atrás do motorista.  Ele não queria atravessar a catraca, pois ainda lembrava do estranho encontro que teve dias atrás, nesse mesmo horário. Naquele dia Rudi havia se sentado sozinho em um banco duplo, retirou um livro da sua mochila e abriu na mesma página que custava a vencer desde a véspera. Um homem achegou-se ao banco e sentou ao seu lado. Ele comentou sobre o tempo e depois perguntou sobre sua mãe.
      — A dona Pierina está bem?
   — Quem é você? — Rudi olhou surpreso para o homem, respondendo de forma agressiva e com outra pergunta — Como chega assim perguntando da minha mãe?  
   — Eu conheço você, conheço sua família e sua irmã Aneta — Respondeu o desconhecido — Eu era amigo de seu pai. Nós fundamos um time de futebol, lembra do Astonvila? As vezes você ia junto com ele nos jogos. Rudi procurou no interior de sua mente por um raio de lembrança. Porém a única memória que ligava seu pai e a um time de futebol, era a visão de um homem entrando pela sala com um saco de roupas, que se tornava motivo de constantes brigas entre sua mãe e seu pai, também recordava de  sua infantil alegria ao ver o varal de roupas repleto de camisas, calções e meiões, nas cores vermelha, branca e azul. Mas nada remetia a algum ginásio ou quadra onde Rudi pudesse ter estado junto com seu pai.
­    — Desculpe mas não me lembro do senhor — Respondeu Rudi. A presença daquele homem o incomodava, não sabia o que mais o aborrecia, se era a presença dele, ou a lembrança de seu falecido pai. Quero terminar esse livro, não estou gostando dessa história, ela não se abre e agora esse homem revivendo meu pai...
    O estranho voltou a fazer perguntas retóricas típicas de quem pretende puxar um assunto — como estava indo a vida? Será que vai chover? A todas perguntas Rudi conferia respostas curtas e evasivas, transparecendo seu desconforto. O homem parecia feliz, pelo menos em sua imaginação, era como se tivesse encontrado uma extensão de seu amigo na terra. Mas Rudi tentava se concentrar, a ponto de franzir a testa na tentativa frustrada de afundar no livro. Para seu alivio, o momento de constrangimento durou poucos quarteirões, pois o homem levantou e puxou o cordão que ficava estendido acima dos passageiros, alertando ao motorista que ele iria descer no próximo ponto.
    Mande lembranças a sua mãe, tchau — disse o homem.
           Tchau — respondeu Rudi.
     Após o desconhecido sair do coletivo, Rudi tentou voltar ao livro, mas ainda não conseguia atentar a sequência dos fatos narrados. Sentia dificuldade em encontrar sentido no que estava lendo e ao final do mesmo parágrafo era preciso retomar seu início, embarcando assim em um ciclo aflitivo sem conseguir vencer aquela página. Não saia da sua cabeça o asco que lhe provocava encontrar pessoas do seu passado, principalmente porque elas ficavam especulando sobre o andamento da vida. Para Rudi essa tinha sido viagem mais desperdiçada da sua vida, sentiu-se um fraco que não conseguia impor sua vontade diante de um estranho, era somente ter dito que queria ler, talvez outro dia pudéssemos nos encontrar em um bar e ai sim conversaríamos sem pressa. Para Rudi o bar era o melhor lugar para conversar com as pessoas, pois se o dialogo se tornasse cansativo, ele poderia se distrair com alguma bebida e fingir que estava prestando atenção.
       Desta vez Rudi não cometeria o mesmo erro. Iria ficar ali, sentado naquele banco cinza reservado aos debilitados, nada de encontros com meu passado. Todas as janelas do coletivo estavam abertas, mas não resultava em nenhum refresco. Porque apenas as janelas superiores do coletivo são de correr, enquanto as janelas na altura dos olhos dos passageiros sentados permanecem  lacradas? Talvez seja por segurança, para que as pessoas não coloquem corpo para fora e percam um braço, ou até mesmo a cabeça, no caso passar um outro ônibus direção contraria. Na verdade não tem nada haver com a segurança dos passageiros e sim, uma proteção ao capital privado, acho que é uma garantia contra as pessoas que tentam escapar pela janela, saindo sem pagar, enquanto o ônibus esta parado em algum ponto ou semáforo.
     Rudi abriu o livro na mesma página de dias atrás, mas o abafamento que sentia era tanto que logo ao final da terceira linha decidiu fechar os olhos na tentativa de acalmar sua respiração. Não demorou muito e uma espécie de hipnose tomou conta de Rudi. Seus olhos mesmo cerrados recebiam visões turvas e oblíquas. A foto de um cavalo em meio uma densa neblina, um quarto nunca estado por ele antes, Sonia cruzando a rua duas quadras à cima de sua casa e o rosto do estranho, vago, pois durante a conversa que tiveram, Rudi não olhou diretamente para ele. A lembrança mais relevante do homem era a sua voz, rouca e seu cheiro típico de um fumante crônico. Esse estado de espírito vinha e voltava, intercalando as imagens em distintas ordenações. Não se engane em achar que Rudi estava dormindo, pois de tempos em tempos ele abria os olhos para verificar se estava perto do trabalho.
     Próximo ao ponto onde deveria descer, Rudi levantou e dirigiu-se a traseira do coletivo depois de pagar a passagem e atravessar a catraca. Ao descer do ônibus voltou a sentir tonturas e teve que apoiar-se em um poste de luz durante alguns segundos. Após expelir dois arrotos, notou uma sensível melhora e seguiu o caminho até a agência que ficava em frente uma igreja, a apenas duas quadras da avenida onde desembarcou.
    Rudi chegou ao prédio, atravessou o hall de entrada, correspondeu ao bom dia da recepcionista e parou em frente a porta do elevador que já estava chegando no térreo. Ao entrar no elevador, ele percebeu que as paredes estavam revestidas de um estofado cinza. Devem estar transportando algo hoje, alguma mudança, espero que sejam vizinhos novos, de preferência mulheres. As portas fecharam e o câmara foi se apequenando, aos olhos de Rudi o recinto se transformou em um dormitório de charcot, com os mesmos acolchoados que protegem os pacientes de se auto-flagelarem, em busca de uma fuga do estado psíquico debilitado. O elevador ainda não havia passado do terceiro andar e Rudi já queria evadir-se, mesmo faltando doze andares para chegar na agência. Quanto mais seu corpo se distanciava do solo, mais penetrava em um ambiente alucinante, nunca havia tido horror de ambientes fechados, mas o pânico lhe penetrava até à medula e entulhava a pouca sanidade que lhe restava. Mais uma vez recorreu a fechar os olhos e recostar a cabeça no acolchoado, dessa vez apenas Sonia visitou sua imaginação, com um olhar que parecia censurá-lo. A agonia gravitacional não durou mais que um minuto, porém para Rudi, parecia que tinham decorridos dez insuportáveis minutos de intensa opressão, quando o elevador aportou no décimo quinto andar, seu bem estar voltou subitamente, até poderia imaginar que tivesse sido apenas uma má impressão.
    A primeira hora do trabalho passou tediosamente, Rudi fez algumas ligações para clientes, finalizou dois relatórios e saiu para almoçar. Durante o almoço comentou com seu amigo as sensações estranhas que estava tendo durante aquele dia. E recebeu conselhos para ir a um hospital. O almoço revigorou as forças de Rudi e já não sentia mais nenhum traço da doença em seu corpo, mas mesmo assim decidiu encaminhar-se até o hospital após o almoço.
     Quando saiu na rua aos sintomas voltaram logo que o sol atingiu seus olhos e percebeu que não tinha condição de ir andando até o hospital. Passou um táxi, fez sinal para o motorista que não o viu. Acho que não era um táxi, era apenas um veículo branco. Lembrou que na outra quadra havia um ponto de taxi. Atravessou o quarteirão no dobro do tempo que faria se estivesse em plena forma física e mental. No ponto de taxi havia apenas um carro.
      Está livre, preciso ir até o Hospital Municipal? — Rudi perguntou a um homem que parecia ser o taxista.
    Sim, pode entrar — Respondeu o taxista.
    Rudi entrou no carro e deitou-se no banco traseiro, lutando com a náusea, que aumentava a cada solavanco do carro contra as lombadas e valetas. Depois de cinco minutos e quatorze reais, Rudi chegou ao mesmo hospital que anos atrás seu pai havia morrido. Ele adentrou a recepção do hospital, retirou uma senha e rapidamente teve seu número chamado. Quem lhe atendeu foi uma senhora com os cabelos tingidos por cores indefinidas, para Rudi deveria ter sido uma tentativa frustrada de tornar-se loira, que resultou em uma cor caramelada, entre o marrom e o cobre. Entretanto definir as cores nunca foi uma tarefa simples para ele, quando criança se perguntava como o seu amarelo poderia ser o mesmo que o das outras pessoas? Chegou a receber alguns zeros em educação artística por experimentar diferentes cores para as coisas: o seu céu era verde, as árvores amarelas e as maçãs azuis.
    O que o senhor deseja? — Perguntou a atendente.
       Estou sentindo tonturas, mal estar  — respondeu Rudi, recorrendo a uma expressão de dor para fidelizar seu relato — às vezes minhas mãos tremem e tenho dificuldade em respirar.
        Desculpe, mais aqui não tem emergência. — informou a atendente. O senhor deve se dirigir até o Pronto Socorro Municipal. O senhor sabe onde fica? Tem condição de chegar lá?
    Acho que sim — respondeu Rudi.
Ao deixar a recepção e pisar na calçada, Rudi perdeu totalmente a percepção do horizonte, o chão lhe fugia dos pés, sombras dançavam na margem dos seus olhos e sua visão começou a escurecer. Rudi voltou-se para o hospital e retornou à recepção.
        Por favor alguém pode ao menos verificar a minha pressão — pediu Rudi à atendente. Ela chamou dois enfermeiros estagiários que o levaram a um pequeno ambulatório que parecia ter sido montado provisoriamente, pois as paredes eram biombos que sugeriam já terem servido de divisória em alguma outra repartição pública.
Um dos estagiários era uma bela garota que ficou responsável por medir a pressão sanguínea de Rudi. Enquanto as mãos dela tocavam levemente o seu braço, Rudi impelia que sua mente chamasse à existência a presença Sonia, todavia essa carga memorial se tornava um peso, pois surgia acompanhada de incertezas e inseguranças. Porque ela era assim? Porque eu encaminhei nossa relação daquela forma? A suposta traição que sofri nunca anulará o traidor que me tornei.
        — Você tem diabetes? — perguntou a enfermeira.
        — Não. — respondeu Rudi. — Meu pai tinha, ele já morreu.
          E o que você está sentindo? — retrucou a enfermeira.
     Mais uma vez Rudi repetiu os sintomas que vinha sentindo desde que despertou naquela manhã.
      — Sua pressão está normal — informou a enfermeira. Neste  momento, enquanto o outro enfermeiro saiu da sala.
        Você tem certeza? — perguntou Rudi. O rosto da enfermeira transpareceu o aborrecimento que lhe provocou tal pergunta.
      — Claro que sim — respondeu a enfermeira — o senhor acha que não sei tirar a pressão de outra pessoa?
        — Desculpe mas não estou muito bem hoje — disse Rudi — dormi mal, estou tendo sensações estranhas, lembranças do meu pai e também de um relacionamento mal resolvido, acho que é por causa de ontem. Sabe, eu tenho bebido demais ultimamente e também tenho feito uso de algumas drogas — Rudi esperava que a enfermeira se compadecesse de seu estado, mas ela o interrompeu com uma sequência de palavras que lhe pareciam familiar, principalmente por seu teor de crueldade.
       — Todos esses detalhes patéticos não me interessam — disse friamente a enfermeira — muito menos a história dramática de seus amores, suas tragédias e esses lugares comuns, não tenho nada haver com isso.
       Essas palavras evocaram uma revelação, como um choque traumático que desperta uma sublime percepção a cerca do que era alheio. O que estava lhe causando esse calvário, essa onda de perturbação, não eram seus desapontamentos, nem mesmo as drogas que ele usava. Era aquele livro que ele não conseguia fazer fluir, que continuava preso na mesma página há pelo menos cinco dias, que ele iniciava o primeiro parágrafo e antes do meio da folha já havia perdido a sequência das idéias. Rudi percebeu seu diagnóstico depois da frase desdenhosa da enfermeira. A mesma frase que estava na página que ele não conseguia transpor, a única diferença era que no livro, o verbo estava conjugado na 1ª pessoa do plural.
       Deixei-me levar pela ilusão, minha imaginação me ludibriou. Cometi um grande erro e tornei-me como Dom Quixote ou Emma Bovary.
    Rudi deixou o hospital, pela primeira vez naquela semana sentia-se aliviado, sem nenhuma pressão, nem mesmo suas dívidas lhe preocupavam. Avistou o banco de uma praça próxima ao hospital. Sentou-se. Pegou o livro em sua mochila. Abriu na página 145. Rasgou-a e iniciou sua leitura na página 147.
        O ar continuava quente e seco.

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